quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Olhos de foca


(a minha mãe e seus olhos de foca)



“(...) as focas haviam um dia sido seres humanos e como o único remanescente daqueles tempos estava nos seus olhos, que eram capazes de retratar expressões, aquelas expressões sábias, selvagens e amorosas (...)” (PINKOLA, 1994)


Olhos de Foca

(a minha mãe e seus olhos de foca)



“(...) as focas haviam um dia sido seres humanos e como o único remanescente daqueles tempos estava nos seus olhos, que eram capazes de retratar expressões, aquelas expressões sábias, selvagens e amorosas (...)” (PINKOLA, 1994)


Ela tinha olhos de foca. Por detrás de seus óculos de lentes grossas, com os quais tentava esconder sua ternura, via tudo, sentia tudo, mas pigarreava e deixava que as lágrimas lhe escorressem uma outra hora. Lágrimas eram sempre inoportunas, pensava ela, enquanto ajeitava seus óculos. Sua vaidade não lhe permitia portar óculos em público, por isto, disfarçava as mensagens que seus olhos emanavam com muita maquiagem e treino. Treino, sim, porque havia lhe custado muito olhar para alguém e lhe transmitir autoridade. Logo ela que fora criada e educada sempre sob a rigidez do olhar da mãe - aquela ditadora, ora ausente, ora, impertinentemente, presente em sua vida. A mãe havia se agarrado a ela de um modo insuportável. Ditava todas as regras da própria casa e, também, da casa da filha. E ela, cabisbaixa concordava com um grunido de insatisfação. Olhar a mãe nos olhos e dar-lhe limite, custou-lhe trinta anos, mas ela acreditava que sem a insistência e força do marido seria impossível. Chorara trancada no banheiro baixinho por três noites seguidas, por acreditar que, com a sua atitude, estaria magoando demais a mãe, que não lhe voltaria a amar (a mãe que só não lhe controlava os pensamentos! E olhe lá!)


Sempre com a cabeça erguida, ia tornando seu olhar mais e mais penetrante, até que um dia, conseguiu o que sempre sonhou, olhar o outro e lhe impor respeito. O poder lhe encheu os olhos de lágrimas, mas as disfarçou com um sorriso. Agora, bastava olhar para o outro que, quase que imediatamente, o outro baixava a cabeça em sinal de aquiescência. Com o tempo, o poder lhe subiu a cabeça e tomou proporções jamais sonhadas. Colocou sob seu cabresto as filhas, o marido, as empregadas, os colegas de trabalho. Havia dominado, inteiramente, seu mundo. só a mãe a irritava. Não se abatia, a velha, qualquer que fosse a intenção do seu olhar, a matriarca lhe parecia imune. Foi só quando seu próprio olhar voltou-se para ela, que ela percebeu que havia assumido o que mais lhe incomodava na mãe, o poder dos seus olhos.


Só quando os olhos da mãe se cerraram inteiramente é que ela pode relaxar. Mas a esta altura, já não sabia muito bem, qual era o oposto de prontidão. Mas, em algum ponto dos seus olhos, pode-se ver um brilho distante, quase esquecido, o brilho da criança que fora, ágil, alegre, cheia de vida e seus olhos emitiram um brilho, que se assemelhava a luz dos faróis. E, assim, ao invés de impor submissão, passou a impor cuidado. A mensagem dos seus olhos havia se modificado. E, todos, ao seu redor, notavam. Alguns, assustados, outros enternecidos.


E foi com olhos de faróis que aprendeu a perdoar. Perdoou primeiro as filhas, por terem se rebelado no momento justo e não quarenta anos depois, como ela, que deixou caducar a coragem, para tomar uma atitude, quando a mãe já se encontrava um pouco debilitada. Depois, perdoou o marido, por todas as mentiras, e, principalmente, por todas as enrascadas em que metera o casal. Afinal, havia sido ele, que ela havia escolhido, como amor e como fardo. Depois, tratou de perdoar a mãe, muito mais por culpa, que por vontade. Mas, esqueceu de perdoar a si mesma e seu corpo explodiu em pequenos gritos, em respiração entrecortada, às vezes, inteiramente cortada.


Com o tempo, viu as pessoas a sua volta mudando. Sua teimosia lhe impedia de executar mudanças muito intensas ou bruscas. Perder o controle, era como a morte e a morte era algo para o qual não estava preparada. Mas achou bonitas algumas mudanças que viu nos outros e resolveu experimentar. Mas o fez como aprendeu a comer na França, um pouco a cada passo. E de passo em passo, viu seu corpo mudando. Aí, também, já era demasiado. Que ela mude por dentro, vá lá, mas que perca a juventude ou a beleza, isto, nunca! Mas não havia como combater o tempo. Segurou-se como pode, de mãos dadas com a beleza que Deus lhe havia ofertado e em todos os produtos de estética disponíveis no mercado. Entretanto, nada lhe ressaía mais que seus olhos, olhos de foca, que foram ficando mais ternos, mais suaves à medida que o tempo passava.


Eram eles que utilizava para abraçar as pessoas que amava, já que o toque não lhe era algo fácil. E com seus olhos, ela abraçou o mundo, viu de tudo, viu até o invisível, até que seus olhos se fecharam. E, quando se abriram, eram olhos que tinham uma ternura selvagem, daqueles cheios de amor, repletos de sabedorias e verdades. Hoje, dizem, que quem a conhece, teve a vida mudada, inundada por seus olhos e que eles são tão fortes e poderosos, que iluminam os setes cantos da Bahia e cada um dos seus detalhes.