segunda-feira, 5 de julho de 2010

Tangentes

(Á Teofilândia, que me fez ver e contar tantas estórias.)

Chega um momento na vida que a gente se encontra numa tangente. Era assim que Manoel se encontrava, numa tangente e olha que ele nem sabia o que era isto.

Manoel vivia no interior da Bahia, numa cidadezinha à 175 km da capital. Morava ali desde sua tenra infância. É certo que havia viajado bastante, conhecido algumas cidades, algumas até internacionais, como Ciudad Del Este no Paraguai, no dia que foi fazer uma entrega de muambas roubadas. O rapaz se sentia um aventureiro e sua vida como vendedor só precipitava mais aventuras. Sua casa era seu carro, que o levava a terras distantes, por estradas diversas. Manoel só não compreendia o porquê acabava sempre voltando para Lamarão, aquele buraco escavado no chão, que não era em nada diferente de todas as outras cidades do interior da Bahia. Contava apenas com algumas casas, um posto de saúde, a Prefeitura, 3 ou 4 comércios e a praça. Era explorador desde pequeno, quando pegava sua bicicleta e ia explorar a própria cidade e as vizinhas. Aventuras e amigos habitavam sua imaginação, porque de concreto não tinha nada, nem aventuras, nem amigos, mas dentro da sua cabeça, era só sentir o vento no rosto e ele já sabia qual seria sua próxima aventura. Mas, no final do dia, lá estava ele de volta à Lamarão. E fora assim sua vida inteira.

Não importava para onde ia ou quanto tempo ficaria, ele acabava, invariavelmente, voltando para sua cidade natal. Agora, aos trinta e cinco anos, ele retornava mais uma vez, depois de ter passado seis meses em Salvador. Regressar sempre lhe trazia memórias, dos companheiros de bar e de prosa, muitos deles, a maioria, na verdade, já havia se afogado no copo de pinga, única atração da cidade. Os que ainda estavam vivos ou eram os avarentos donos dos poucos estabelecimentos comerciais, que não morriam por pura mesquinhez, ou eram aqueles que haviam casado com mulheres fortes, daquelas bem chatas e intransigentes que pegavam nos pés dos maridos e os vigiavam, indo resgatá-los nos bares ou na única casa de Luz Vermelha da cidade. Ela iam para porta do puteiro e ficavam gritando de lá os nomes de seus homens. Não se achavam dignas do local, então jamais entravam, mas faziam cada escândalo. O mais famosos foi de Lucilene (todas as mulheres da cidade, sabia-se lá porquê carregavam o nome com a terminação “lene”) que não só foi para porta da casa de Dona Vitorilene (dona do bordel) e, não só levou o marido debaixo do rolo de bolo, como também levou a dama que o marido havia levado para o quarto. A pobre dama que havia acabado de se empregar no estabelecimento e era a nova coqueluche do local repleto de mulheres já velhas, desgastadas, cansadas e por demais conhecidas, tomou uma sova tão grande, que partiu no dia seguinte coberta de machucados para Teofilândia. E a confusão só não foi pior, porque Dona Vitorilene esbravejou o mais próximo que pode de Lucilene, que a dama ali era ela...

Chegar à cidade trazia também memórias de todas as suas namoradas, moças casadoiras que foram defloradas por ele, com juras de amor eterno que terminavam sempre na semana seguinte, devido a uma viagem sua de “urgência” para outra localidade, que, inevitavelmente, durava meses. E durante a viagem, o destino acabava por guiar a um novo amor, que era quase que imediatamente seguido de novas juras, novos defloramentos, novas partidas. Se apaixonava todos os dias, mas amar, amar mesmo, só amou Deiselene e Marilene. Estas foram as duas únicas mulheres que não pode deflorar. A primeira, sua mãe, costureira de primeira, que faleceu de morte morrida, enquanto dormia, numa das suas viagens, segundo o Doutor da cidade. A segunda, a única jovem que o ignorou, que não se derreteu por seus versos, seus poemas, suas juras de amor.

Manoel acreditava que a vida era curta e única. Afinal, sua mãezinha adorada foi para o Paraíso quando ele tinha acabado de completar dezoito anos e nunca mais voltou para vê-lo nem acordado, nem dormindo, nem para desejar Feliz Aniversário. A partida da sua mãe carregou consigo os últimos fios que o prendiam àquele lugar e, desde então, fazia viagens cada vez mais longas, tinha relações cada vez mais curtas com as mulheres, partia antes que houvesse possibilidade delas o deixarem e trabalhava com qualquer coisa que pudesse pagar sua estadia, refeições e prazeres por curtos períodos. Havia perdido as contas do número de namoradas que teve e, também do número de empregos assinados ou não em carteira. Seu lema era “só leve consigo o que pode carregar sozinho”, por isto, consigo só havia um pente, uma escova de dente, uma pasta, uma gilete e sua carteira.

Voltava agora à Lamarão porque foi a vez do seu pai se despedir. Morreu, segundo o Doutor, do coração. Não agüentou o rojão de Jucilene, garota de dezesseis anos, a nova contratada da Luz Vermelha e nova sensação da cidade. “Se matou meu pai, deve ser boa mesmo, tenho que experimentar” – pensou ele. O Doutor lhe contava os detalhes do óbito no boteco de Seu Gil e o fazia com pausas para gargalhadas. Disse que o resgate do homem foi realizado no bordel mesmo, da cintura para cima, parecia um soldado, peito estufado, olhos mirando o teto, a mão apoiada no peito, da cintura para baixo, aprecia um touro, com o membro em riste que não havia baixado nem mesmo com o ataque cardíaco fulminante. “Eita Viagra retado! – acrescentou ele piscando o olho para Manoel entre sorrisos e batendo no bolso da camisa. “Tomara que nunca precise disto” – pensou Manoel, vangloriando-se secretamente da sua capacidade como amante. Depois do episódio, a menina teve seu preço dobrado e Vitorilene colocou um cartaz na porta dizendo: “ Aqui se mata o homi amor. Entre, se tiver coragi!” E, ninguém sabe se pela propaganda, pela novidade, pelo respeito a Seu Roque, que sempre fora forte como um leão, quando derrubava uma, a mulher saía esbaforida, quase sem sentidos, o que se sabe é que o puteiro teve a freguesia aumentada desde o falecimento do Seu Roque.

Manoel cumpriu todos os longos ritos da morte. Só veio descansar no terceiro dia. Ficou ali no meio da sala da casa do seu pai, naquele lugar que sempre e nunca fora sua casa, onde, apesar de conhecer cada detalhe, nunca se sentiu muito confortável, nunca a sentiu como sendo sua. Sentou-se no sofá e sentiu algo estranho atravessar seu peito. Sentiu, pela primeira vez, um vazio e sua visão escureceu. Havia perdido a vontade de tocar a ripa e saltar dali para outro pouso. Sumiu o desejo, que o consumiu a vida toda, de pular de galho em galho, de cidade em cidade. Mas, se havido sido isto que sempre havia feito a vida todinha! O que faria agora? Encontrava-se no fim da linha, numa tangente.

Achou que havia chegado a sua vez. A morte já havia carregado seus pais, e agora era ele quem ela vinha buscar. E teve medo. Logo ele que nunca temera nada na vida, ia temer justo o fim?! Mas era muito novo para morrer. O que havia feito na vida? O que havia construído? Nada! Nadinha de nada! Não podia morrer agora. Mas sentia tanto medo, que resolveu não sair de casa para reduzir os riscos de se bater com a bicha de frente e dela levá-lo para os confins do além. Temendo a morte, evitou também usar a gilete, o gás e qualquer coisa que pudesse lhe causar dano como facas, garfos etc. Ao fim de quatro semanas estava fraco, magro, imundo, de cabelos longos, desgrenhados e barba de que parecia um misto de papai Noel com um bode. A casa inteira fedia. Tinha as portas e janelas fechadas, parecia um mausoléu abandonado. Na sua tentativa de fugir do fim, de conter aquele negócio no seu peito que ele não sabia o que era, ele se congelou, morreu de certa forma para o mundo. Só aí, seu peito, então, se calou.

Os vizinhos, preocupados, reuniram-se e foram lá bater na sua porta. Bateram palmas, gritaram seu nome, assobiaram e nada. Ponderaram que se atendesse, o deixariam em paz, com sua depressão, afinal de contas, após estava tantas mortes ocorridas naquela casa era natural que se encontrasse um tanto derrubado. Mas, se não atendesse, derrubariam a porta e enterrariam o corpo. Era um desgosto que a cidade tivesse tantos óbitos, mas, pelo menos, Manoel, teria um sepultamento digno e não morreria como um cão sem dono. Manoel fez ouvidos mocos às palmas, aos gritos, aos assobios, às batidas, mas os vizinhos foram tão insistentes, que ele acabou percebendo o que iria acontecer se ele não abrisse a porta. Com certa dificuldade, conseguiu erguer-se e abriu a porta no momento exato que os vizinhos se preparavam para colocá-la abaixo. A população ao vê-lo parou de súbito. Para eles, Manoel aprecia uma assombração, era a imagem da própria morte, uma caveira ambulante em decomposição acima da terra e fedia tanto como se estivesse com birigui. Assustados, todos correram de volta para suas casas, a exceção de Marilene, que chegou bem perto da porta, cobriu o nariz com um lenço e perguntou um tanto de coisas para ele, que ele respondeu prontamente, sem pensar.

- Pronto! - ela disse – Não maluqueceu, só se largou.

Respirou fundo na frente da casa, tapou o nariz novamente e entrou na casa. Abriu portas, janelas, ligou o chuveiro e foi empurrando o homem para debaixo dele, com roupa e tudo. Manoel, confuso e fraco, foi obedecendo sem resistir aos comandos da moça.Já debaixo d´água, ele recebe uma barra de sabão e, em seguida, um tapa na cara, com a ordem:

- Acorda, homem e vai viver a vida, que você não morreu ainda!

Madelene saiu esbaforida, quase sem ar. Havia prendido o ar por tanto tempo, que saiu da casa lívida, como se tivesse se afogado. Não respiraria aquela “nhaca”, por mais que amasse aquela figura que um dia havia tido asas nos pés e coração andante, que uma vez se enrabichou pelo seu, mas que, como sempre voou para longe e ganhou a estrada, mas que sempre voltava. E quando o cabra para na cidade era para morrer! Morrer sem ela ter tido a oportunidade de sentir-lhe o cheiro, não o cheiro daquela imundice que ele estava hoje, mas o cheiro de alfazema já tão impregnado em suas camisas que já parecia sair da pele. Não ela não o deixaria morrer, mesmo que fosse para ele se arrancar de novo da cidade, para voltar muito tempo depois. Um dia, ela sabia, ele voltaria por ela e para ela.

No dia seguinte, bem cedo, o Doutor bateu na porta de Manoel. Trazia consigo uma menina, que já entrou na casa munida de toda sorte de equipamentos de limpeza disponíveis na cidade e, nas mãos, três quentinhas, para servir de refeições naquele dia. Manoel abriu a porta ainda perdido em devaneios. O Doutor entrou mesmo sem ter sido convidado e foi o ordenando a sentar e tirar a camisa. Manoel foi seguindo as ordens e antes de questionar a que se devia a visita, ele sentiu o forte odor que vinha da quentinha e seu estômago roncou. Mas o Doutor só o deixou comer após o exame e Manoel só queria que aquele exame terminasse logo, para que ele pudesse se deleitar com aquela galinha ao molho pardo, que exalava um cheiro tão delicioso, que afagava Manoel como uma carícia.

Na primeira semana de isolamento, Manoel refletia sobre tudo. Seus pensamentos fluíam como um rio, e ele, os ia parando devagar, um a um, como se fosse uma grande pedra incrustada no meio da correnteza. Repassou toda a sua vida. Fez descobertas assombrosas sobre si mesmo que ia escrevendo em pedaços de papéis e os rasgando em seguida. Na segunda semana, sua mente havia se fixado nas descobertas a cerca de si mesmo e as repetia incessantemente, como um LP arranhado. Na terceira semana, sua cabeça havia se esvaziado e só via o escuro do nada. Só escutava besouros, galos, grilos e cigarras. Na quarta semana, era como se tivesse desencarnado, até que ouviu vozes, ruídos, mas eles lhe pareciam vir de tão longe. Era como se alguém estivesse batendo na porta do purgatório e ele tivesse lá embaixo no inferno. Em seguida, veio um grito. Era seu nome que diziam? Ele já não conseguia distinguir. Será que alguém lá do Paraíso veio me salvar da danação? – considerou ele. E ficou feliz com o próprio pensamento, alegre por ser especial o suficiente para alguém lá de cima, vindo do Paraíso descer para o inferno para resgatá-lo. E resolveu seguir o grito. Até que se deu conta que não era um único grito, eram muitos e se assustou. Hesitou um pouco, ma como os gritos, batidas e assobios não paravam, ele fechou os olhos e abriu a porta de olhos fechados, cheio de medo, esperando o pior. Em sua imaginação, do outro lado da porta estavam todos os pais das filhas que deflorou munidos de facões e espingardas para acertar com eles as contas e lhe prover uma morte lenta, dolorosa e certeira. Quando recebeu o primeiro tapa, não caiu, mas ficou ali parado esperando dores maiores. Mas o que veio foi uma chuva de perguntas. Abriu os olhos e viu Madalene, mais bonita do que se lembrava. Antes de conseguir acordar para o que estava acontecendo, foi derrubado por uma enxurrada de luzes, odores que invadia, de repente, a casa. De súbito teve noção que aquele cheiro terrivelmente fétido que sentia partia não só dele, mas da casa como um todo. Baixou a cabeça enrubescido por Madalene vê-lo naquele estado, mas foi agarrado pelo braço, antes mesmo de ter tempo de formular uma desculpa. Era levado com tanta violência pelo braço, que se bateu em algo, que não conseguiu identificar, só sentiu mesmo foi o choque da água gelada em seu corpo, colando nele os farrapos que o embrulhavam. Ela gritou algo sobre ele acordar, depositou em suas mãos algo macio, deslizante e cheiroso e partiu. Ficou ali, muito tempo, num misto de desejo, esperando que a mulher o despisse e se despisse junto e vergonha, por seu estado deplorável. Como nada ocorreu, despiu-se sozinho e tomou banho. Não sabia se o banho, o tapa ou o cheiro de Madelene o haviam despertado. Mas, foi sentindo novamente uma ânsia de vida, de criação, uma ânsia de possuir Madalene. Fez a barba e enquanto a fazia, sua cabeça encheu-se de planos, de planos de vida.

Depois de um longo período de sono, parecia-lhe que sua cabeça havia acordado com grande disposição, pois suas idéias fervilhavam. Faria a Requião uma proposta irrecusável até mesmo para aquele mão de vaca. Compraria seu negócio pelo dobro do preço e montaria ali um Hipermercado, com produtos locais e estrangeiros. Compraria tudo pela metade do preço no Paraguai e venderia aqui com certa margem de lucro. Com o dinheiro excedente pagaria as dívidas do pai, inclusive com a casa da Luz Vermelha, reformaria a casa, atrairia investidores da Bahia que visassem implantação de Indústrias que proveriam toda a região, inclusive seu próprio negócio e, então, cortejaria Madelene.

O galanteio começaria hoje mesmo. Daria-lhe uma flor, uma Margarida, para simbolizar a inocência que Madalene lhe inspirava! Tendo decidido, rumou para porta da casa, quando a abriu, encontrou o Doutor, com uma quentinha na mão e uma moça muda de equipamentos de limpeza. Ambos entraram prontamente na casa. Ele foi obrigado a entrar também. O Doutor não lhe deixou sair e executar seus planos, antes de lhe fazer um exame detalhado. O diagnóstico foi o esperado: desnutrição, desidratação e vermes. Receitou-lhe umas ervas em solução para os vermes, água e suco para a desidratação e a comida de Dona Leilene – proprietária do único restaurante da cidade, o Aconchego, que resolveu tocar em frente após a morte do marido. O administrava com mãos de ferro, garantindo para si um lucro jamais obtido enquanto o marido ainda era vivo e a comida era preciosa - para curar sua desnutrição. Comeu duas quentinhas acompanhadas de quatro copos d´água e, em seguida, tomou uma colherada das ervas em solução. Fez uma careta, guardou a terceira quentinha para almoçar mais tarde e ganhou a rua.

Primeiro, deixou a margarida na porta da casa de Madelene, com um poema atado em seu ramo, que dizia:

“Da escuridão

Trouxeste a luz

Do amor

Tiraste a cruz

Da fome

Proveste o cuzcuz

A sua beleza, em flor,

Como sempre, me seduz”.

Depois foi tratar com Requião. A discussão durou três dias, ao fim destes, conseguiu inspirar tanto o avarento que seus olhos brilharam já vislumbrando as barras de ouro advindas do negócio e só arredou o pé, quando se tornaram sócios. A construção do Hipermercado durou trinta dias, mas o negócio estaria fadado ao fracasso se o próprio Manoel não tivesse atraído para a região duas indústrias da capital, que garantindo o aumento de circulação monetária e populacional ao local. A escolha das indústrias foi o maior chute que havia dado na vida, se tivesse jogado na Loto este dia, tiraria o primeiro prêmio. Durante as obras para implantação das indústrias na região, foi descoberto petróleo. Assim, uma petrolífera brasileira foi chamada e iniciou a exploração do produto.

Manoel pensou: “Eu aqui sentado sobre ouro o tempo inteiro, sem saber! A riqueza aqui o tempo todo! É, creio que a riqueza está e estará sempre em nós, em locais que não desconfiamos. A riqueza somos nós!” Anotou este último pensamento, talvez pudesse criar um poema para Madalene com ele, ou um slogan para a cidade ou para o hipermercado.

As coisas estavam indo conforme o previsto. O negócio ia de vento em polpa, apesar das interferências de Requião. Havia conseguido quitar as dívidas do pai e já havia iniciado a reforma da casa. A única coisa que não ia bem era a sua inexistente relação com Madalene. Enquanto todas as outras mulheres da cidade, praticamente, se ofereciam a ele, ela jogava fora, na vista de quem quisesse ver, cada um de seus presentes, entregues, semanalmente, em sua porta. A única coisa que não jogava fora eram os poemas que acompanhavam os presentes. Ele já não agüentava mais a abstinência sexual forçada e para não se precipitar e arruinar tudo com Madalene, viajava cada vez com mais freqüência para os bordéis das cidades mais ao norte de Lamarão, para evitar que a mulher ouvisse ou visse algo que não fosse do seu interesse. Quando era abordado por alguma mulher da cidade, a descartava prontamente, para evitar o falatório.

Mas um dia, viu-se preso ao decote, aos quadris sensuais e aos olhos azuis de Suselene. Estava no auge dos seus dezoito anos. Tinha os cabelos castanhos, que lhe caíam liso no meio das costas e cada vez que vinha ter com ele, vinha balançando os quadris, jogando os cabelos, com os seios saltando de dentro do decote. “Ah, essa menina é de tirar o juízo de um” – ponderava ele, enquanto fechava a porta antes que ela pudesse entrar em seu escritório e atendia a um telefonema imaginário. Sempre fazia isto quando notava a menina despontando do outro lado da calçada. Sabia que se ele vacilasse Suselene entraria em ação e, assim, todo o esforço feito na conquista de Madalene seria em vão. Resolveu terminar seu próprio drama, apressando as coisas com Madalene. Partiu em disparada para sua casa, tentando formular o que diria a ela e a seus pais. Batei na porta de mãos vazias. De nada adiantava gastar dinheiro com presentes que seriam jogados fora. Foi a mãe quem atendeu. Manoel pediu para falar com Seu Tobias e em menos de cinco minutos, o senhor havia lhe concedido a mão da filha em casamento. A mãe foi até o quarto onde estava Madalene, sorrindo de contentamente, para levar-lhe as boas novas. A filha ouviu, calada. A filha desceu e encontrou Manoel ao pé da escada, a aguardando. Olhou no fundo dos olhos de Madalene, buscando compartilhar com ela a felicidade que sentia. Mas os olhos da moça expressaram ira, não alegria. Aos berros, a mulher proferiu impropriedades a ele, acusando-o de tê-la comprado e seu pai de ter aceito a negociata. Manoel leva a mão ao peito, para evitar que seu coração se partisse em pedaços tão ínfimos, que o remendo se fizesse impossível. A mãe leva as mãos a boca e apóia-se na mesa, percebendo que perderia os sentidos. O pai indignado diz que a filha deveria ter ficado feliz, de alguém querer uma mulher de segunda mão como ela, sem cabaço e sem mais condições de fazer filho, que já tinha namorado mais de dez e não havia se casado com nenhum, porque ninguém a queria. Completou a frase, dizendo que ela deveria se ajoelhar aos pés daquele moço, que era ou estúpido ou um anjo para querê-la, já que Manoel, ao contrário da família tinha bens e era distinto.

- Se oferecesse dinheiro – disse o pai – aí que eu venderia mesmo! E você, finalmente, desencalharia!

A filha cai no chão, aos prantos. O pai proferira tudo o que ela sentia a respeito dela mesma, em voz alta, na vista de Manoel, aquele desgraçado, que veio comprá-la, que acreditou que ela iria com ele, pelo dinheiro. Dinheiro era a única coisa que não queria, queria que ao invés de presentes, ele se fizesse presente, que ao invés de ir tratar diretamente com o pai, ele fosse ter com ela. Três coisas ficaram claras para Madelene. A primeira era que Manoel não queria nada com ela, que nunca a amou e nunca a Maria. A segunda, é que agora ele sabia quem era Madalene, uma velha solitária, descabaçada, infeliz. A terceira, é que teria que sair da cidade, não mais viveria sob o mesmo teto do pai e, por vergonha, não queria mais olhar nos olhos piedosos de Manoel, porque ela já não suportava mais a comiseração alaheia.

Manoel a olhou incrédulo. Não podia acreditar! O que havia, então, significado o resgate? O banho? A comida? Será que Madelene estava se vingando de suas cortes mal intencionadas no passado? Resolveu voltar para casa, de cabeça quente não conseguiria dizer-lhe nada além de palavrões e obscenidades. Em casa, um pouco mais tarde, resolveu voltar e cobrar explicações, ao invés de resignar-se. Findaria aquela estória de uma vez por todas, para que, com o coração leve, pudesse partir para a próxima, se assim fosse necessário, ou nela pudesse descansar sua cabeça. E era com esta última opção que Manoel contava secretamente.

No dia seguinte, ao sair do trabalho, dirigiu-se a casa dela. O dia havia sido imprestável para o laboro. Perdera o dia tentando criar um diálogo, ou pelo menos, um roteiro com os tópicos que gostaria de discutir com aquela mulher insana. Mas, nada conseguiu criar, suas preocupações só aumentavam quando lembrava dela, aos gritos, acusando-o de querer comprá-la. Não se importava com seu passado, contanto que ela tampouco implicasse com o seu próprio. Não ser seu primeiro homem e, sim, seu décimo ou vigésimo, o feria um pouco, mas consolava-se pensando que com ele, ela descobriria o amor e seus segredos. Neste momento, lhe ocorre que talvez fosse justo o contrário, talvez ela o ensinasse sobre o amor e seus segredos e ele lhe ensinaria os mistérios de uma boa cama. A descoberta do tipo de sentimento que nutria por Madalene o amedrontou tanto que teve que tomar três copos de café puro e, de quebra, um pedaço de bolo. Como nem isto o acalmou, ele consolou-se pensando que se a coisa ficasse realmente muito ruim, ele optaria pela saída mais rápida da situação, ou seja, ficaria com outra mulher, mais nova, mais gostosa, menos importante para ele. Relembrou as palavras duras do pai de Madelene e concluiu a divagação dizendo para si mesmo em voz alta: ”E quem é virgem nos dias de hoje, afinal?!”

E foi assim, com o coração embotado, a cabeça fervilhando de idéias e na defensiva que ele foi atrás de Madelene. Quando bateu na porta, a própria atendeu. Tomado pela surpresa, ele ficou mudo por alguns instantes, enquanto a fitava. Foi ela que iniciou o diálogo:

- Errou de casa? – questionou ela de um modo que o pareceu indiferente

- Não. – respondeu ele firme – Vim falar com você.

- O que? – balbuciou ela um pouco nervosa.

- Posso entrar? – pediu ele, tentando pensar na próxima frase.

Ela hesitou um pouco até que abriu a porta e o deixou passar. Abrir a porta de sua casa, era para Madalene, como escancarar as portas de seu coração que, quando se tratava de Manoel, lhe dava um trabalho danado para não ficar com as portas cardíacas escancaradas. Não conseguia acreditar que abriria tão sinceramente seu coração novamente para ele. Mas será que ele um dia saiu de lá? A mulher não sabia se seu pobre tambor que carregava no peito, agüentaria outra corte e outra partida. Tomada pelo medo, que aquele homem que sentado aprecia inocente, mas que falando era o Diabo, entrasse em seu coração e avacalhasse, bagunçando tudo de novo. Baixou os olhos para criar coragem de encará-lo novamente sem parecer tão obviamente apaixonada por ele. Ponderou que entre o vazio e alguma emoção, mesmo que fosse passageira, valeria a pena. Seria a sua despedida, se tudo desse errado.

Manoel respirou fundo assim que a moça sentou e atirou:

- Por que você não quis se casar comigo?

- Porque você nunca quis se casar comigo, porque você nunca me quis de verdade. Você nem sequer insistiu para me levar para cama, quando teve oportunidade. Agora você volta dez anos depois, como se estivesse aqui o tempo inteiro, querendo casar comigo, você nem sabe quem eu sou, o que gosto, o que faço, o que como, e loucamente, porque está se sentindo velho, mal amado, sei lá! Você decide que tem que casar e eu sou a mercadoria da cidade?! O que mudou? Por que você quer casar comigo agora?

Calou-se, se proferisse mais uma palavra, sabia que cairia em prantos. Odiou-se pelo seu excesso de sinceridade. Manoel ouviu tudo fascinado. Era verdade, tudo. O que havia mudado? Ele tampouco sabia. Certo era que agora ela dominava seus pensamentos. Continuou a conversa:

- É verdade. Não sei o que mudou. Não tive coragem de te levar para cama na época, como hoje, sua sinceridade, me impede de proferir mentiras. Mas, o que sei, é que hoje, desde que voltei e você foi na minha casa, só penso em você.

- Ah, Manoel, você acha que me deve algo só porque fui lá?! Você não me deve nada.

- Sei que não te devo nada, devo só o que você me inspirou a fazer.

- O que, homem, eu te inspirei a fazer?!

- O Hipermercado, os investimentos na cidade, sair de casa, reviver. Você foi minha inspiração, você me acordou para vida.

Manoel, quando eu tinha vinte anos, eu sonhei que casava contigo, na Igreja, de véu e grinalda e que tinha três filhos, e que era feliz. Mas hoje, eu olho e penso que eu jamais teria paz. Você está quieto agora, mas daqui um tempo, você como todos os homens desta maldita cidade, irá se deitar com toda coisa que usar saia, enquanto a gente vai ficando em casa, morrendo por dentro. Não quero isto para minha vida. Não quero ser perseguida por fantasmas de mulheres que se encantaram por você, que são dez anos mais novas que eu, como Suselene...

A mulher era uma bruxa, como ela sabia da Suselene? Amanhã o pau ia cantar no hipermercado! Ela continuou:

- Um dia já quis que você se apaixonasse loucamente por mim. Mas, hoje, não quero paixão, quero amar e ser amada. Quero alguém que me ame pelo que eu sou!

Falou esta última frase com lágrimas nos olhos e como odiava a cara de compaixão alheia diante de suas lágrimas, completou:

- Odeio ter te desejado primeiro. Odeio ter sido eu que fui no seu encalço. Odeio ter feito tudo para te conquistar. Como poderei me relacionar com alguém que me ama tão pouco, que nunca fez um esforço sequer para me conhecer. Não entrarei numa relação para sustentar o amor pelos dois. Passarinho só não faz verão.

Tendo dito isto, levantou-se e quase voou escada acima. Em seu quarto suas malas já prontas, aguardavam sua partida, que naquele dia, não ocorreu. Enquanto isto, Manoel, parado, na mesma posição na sala de estar, não sabia o que o havia atingido. Nunca encontrara alguém tão sincera, tão sem medo de proferir a verdade que fosse para outro alguém. Ao mesmo tempo, nunca havia se sentido tão incompreendido por alguém. Baixou a cabeça, enrubescido, ao perceber-se emocionado e, assim, cabisbaixo e com os olhos mareados, foi embora.

No dia seguinte, fez as malas e pariu em busca de novos negócios. Custou-lhe um mês de viagem a locais diversos, para perceber que havia retornado a velha rotina e, com isto, anulado a decidida mudança. Não quis mais pensar no assunto. Seguiu viagem. Após mais um mês retornou a Lamarão. Bastou chegar à cidade, para seu coração se apertar. Não era homem de ficar sozinho, Madalene tinha razão. Colecionava mulheres, uma em cada pouso, mas desde o dia que a mulher o disse que deveria acordar, na sua terra natal ou em qualquer outra, seu coração parecia palpitar apenas por Madalene.

Chegou à cidade e descobriu que Madalene havia se tornado funcionária do seu Hipermercado. Com o dinheiro, havia saído da casa dos pais e alugava a casa do falecido Andrelino. A encontrava todos os dias. Ela destacava-se rapidamente, tendo um tino comercial e organizacional que a destacam. Mas, para Manoel, ela se destacava por muito mais. Encontrá-la era uma delícia e, ao mesmo tempo, uma tortura. Manoel viu-se medroso, justo ele, que conseguia chegar, abordar e deitar com qualquer mulher, em qualquer lugar, em qualquer hora, se via frouxo quando Madelene estava por perto.

O coração de Madalene dava saltinhos quando Manoel estava por perto. Adorava o trabalho que executava, e esforçava-se ainda mais para ser notada pelo dono do empreendimento. Mas seus esforços pareciam ser em vão. Ele já deve ter se apaixonado por outra – pensava ela, com tristeza – Eu estava certa, o amor dele nunca existiu... – e baixava a cabeça conformada e desconsolada. “Também, eu fui uma besta em me declarar. Bastou isto, para ele fugir da cidade para ficar longe de mim e quando chega, nem me olha nos olhos! Mas era eu quem devia estar com vergonha!” – seus pensamentos disparavam incessantes cada vez que Manoel passava por ela e nada dizia. Madalene começou a se sentir a mais feia, velha e gorda das mulheres, a menos desejada da cidade, do mundo inteiro. E tomada de uma raiva imensa que crescia dentro dela, quanto menos desejada se sentia.

No final da tarde de uma sexta-feira, Manoel a viu saindo do Hipermercado. Passou por ela e acabou andando ao seu lado. Sem jeito, Manoel, não soube o que dizer. Mas, quando pensou em dizer algo, ouviu Madalene o convidando para um sorvete. Ele assentiu com a cabeça, ela se odiou por ter sido ela a ter feito o convite. Por que ela sempre se repetia? – questionou-se enfurecida. Enquanto ele permanecia mudo, ela contava estórias variadas sobre coisas do trabalho, da cidade e do que havia acontecido com ela. E, ele, por outro lado, só as escutava. A olhava fascinado. Gostava de penetrar no mar daqueles olhos azuis, ligeiramente estrábicos. Ela não era sensual como a Susilene, nem era a mulher mais bonita que havia conhecido, mas era dona de uma beleza singular, só dela. Manoel aproveita as estórias para apreciá-la. Madelene torceu para que ele a convidasse para fazer algo após o sorvete, mas nada aconteceu. E ela, lívida de tristeza, esboçou um sorriso amarelo voltou para casa, cabisbaixa.

E então, começaram a se encontrar com mais freqüência, sempre por acaso. Talvez não se encontrassem antes, porque Madalene mal saia de casa. E a cada encontro, uma nova proposta de encontro era feita, todas por Madalene. Manoel não recusava nenhuma delas, aquiescia sorridente, com a cabeça. Entretanto, o fim de cada encontro era trágico para a moça. O rapaz tão famoso na cidade por sua habilidade com as mulheres, com ela, nada demonstrava. Pelo contrário, ela era quem se mostrava hábil e sutil marcando cada um dos encontros. Madalene decidiu não mais convidá-lo para nada, esperaria que ele, finalmente, tomava a iniciativa. Sentia-se diminuída e pouco desejada por fazer todo o tempo as vezes do homem, tomando as iniciativas,. Porém, de natureza impulsiva, Madalene não conseguia controlar-se, morria de medo de que, se não o fizesse, estaria levando a relação ao término. Manoel, por outro lado, encantava-se e intrigava-se com o jeito da garota, tão independente e determinada, tão única, diferente de todas as mulheres que já havia conhecido e, olhe, que não foram poucas. Ficava feliz com os convites da menina, mas temia convidá-la para algo que ela fosse achar estúpido ou clichê da parte dele.

Assim, passaram seis meses saindo juntos. Cada volta para casa era uma nova noite Ed choro e insônia para Madalene, enquanto que, para Manoel, as noites pareciam divertidas e relaxantes, ele dormia como um anjo, quando saíam. Madalene já sentia o fogo subindo e lhe consumindo as faces, mas como nada partia de Manoel, ela passou a sentir-se a última das mulheres, já que Manoel não tomava qualquer iniciativa, não a olhava como os outros homens, nem fazia menção de levá-la para cama. Cansada de viver o mesmo drama todas as noites e admitindo que aquela relação tão desejada só existia por sua causa, Madalene “chuta o pau da barraca” e tomou a iniciativa de levá-lo para cama. O resultado foi lastimável para Madalene, o homem além de não ter sentindo prazer com ela, ainda lhe informa que havia realizado uma vasectomia na última viagem à capital, depois de perceber o número excessivo de filhos que havia feito em seus diversos pousos. Madalene viu a barraca cair pedaço a pedaço sobre ela. E anestesiou-se como pode.

Manoel a desejava, mas havia algo nela que lhe causava medo. Sentia temor de perder-se nela e ser abandonado, como sua própria mãe havia feito. Achou-a tão desinibida na noite que passaram juntos, que sequer conseguiu ejacular, parecia que assistia a um espetáculo privado, só dele. Sentiu que a havia desapontado com a infertilidade, mas ainda havia jeito a ser dado à questão. Ela o havia deixado tão excitado, que de vê-la no mercado, ele sentia uma ereção e corria para o banheiro para se aliviar. A fitava de longe, sorrindo feliz e um tanto abestalhado. Então, descobrira, por intermédio de Lourival, que finalmente alguém o havia fisgado, compreendeu o sentimento já tão gasto de tão falado. Manoel a amava.

Um mês após a primeira noite deles juntos, Madalene presenciou um cortejo das ex-mulheres de Manoel passar na cidade. Com a notícia de que havia enricado, todas correram para pegar uma parte do que lhes era devido. A cada mês uma chegava. Algumas se instalavam provisoriamente, outras, permanentemente, na cidade. Presenciava, calada, uma a uma, gritar, dar ordens, exigir e demandar coisas diversas a seu namorado e ele, resignado, fazia o papel de conciliador, atendendo um a um o que lhe era ordenado. Só Madalene não gritava, só ela não exigia, não demandava, não lhe dava ordens. Se fosse fazê-lo, a sua única demanda seria amá-la. Mas, ela sabia que o amor não podia ser obrigado, que ele não vinha de caso pensado. E ela, mesmo anestesiada, limpa suas lágrimas.

A vida sexual de Madelene estava começando a melhorar. Para um homem que já havia tido tantas amantes, ele não lhe pareceu grande coisa. Ou será que ele não era grande coisa com ela? Pois a julgar pelo número de mulheres que haviam se instalado na cidade e requisitado dinheiro e atenção de Manoel, ele deveria ser um fenômeno com as demais. Estava claro para Madalene que o problema todo era ela. Com isto, sentia-se renegada, relegada a segundo plano. Mas, se recusava a repetir o padrão de suas ex-mulheres, não era como um daqueles “fast-foods” que Manoel queria implantar em Lamarão, igual em tudo, nas queixas constantes, no grito como forma de manipulação. Ele devia ter vontade própria e ela não ia interferir nisto e controlar cada passo da relação.

Tanto tempo já havia passado que todos na cidade já sabiam do seu caso com o dono do hipermercado e, também da falta de seriedade da coisa. Como forma de tornar seu caso numa relação, ela mudou-se para casa de Manoel, que viu, impassível, instalar-se em sua casa. Morar com ele, ao invés de fazê-la se sentir validada, trouxe-lhe mais infelicidade. Porque a cada dia ficava mais óbvio que Manoel era um bunda mole, que jamais se desprenderia de suas ex-mulheres, que jamais lhe faria um filho e que jamais a pediria em casamento novamente. Deu seu grito de guerra, já não agüentando mais guardar tanta angústia no peito. Manoel não compreendeu porque sua esposa, porque era assim que ele a via, tinha gritado daquela maneira com ele, mas acostumado que estava, baixou a cabeça resignado e e esperou o momento que toda aquela gritaria acabaria e a vida deles juntos pudesse, finalmente, voltar ao normal. Mas, não voltou. Passados trinta dias da gritaria, Madalena ainda não queria tocá-lo, nem sequer o olhava nos olhos.

Madalene esperou que algo mudasse desde o dia em que soltou sua fúria sobre o namorado, mas nada mudou. Isto a consumiu tanto, que foi como se algo nela houvesse morrido. Morreu uma parte dela, junto com uma parte da relação. Seu luto levou trinta dias. Tempo este em que pode, finalmente, olhar para aquela criatura que tanto amava como homem novamente. Custou-lhe mais trinta para conseguir tratá-lo de modo carinhoso. E só noventa dias depois, seu coração voltou a bater. E quando finalmente acordou, seu coração só lhe dizia que era hora de ir embora. Olhava para Manoel e chorava solitária com a possibilidade de deixá-lo, enquanto lavava roupas no tanque. Afinal, Manoel havia sido o único homem para quem se entregara de corpo e alma, havia sido o único amor de sua vida e um amor deste tamanho é difícil de deixar para trás.

Manoel viu a vinda de Madalene para sua casa de bom grado. Finalmente o casamento esperado, de modo muito mais prático que o previsto. Não era um destes homens que gostava de viver solitário, agradava-lhe o pensamento de ter alguém com quem compartilhar o lar. Mas, jamais faria esta oferta para Madalene, quem sabe o que pensaria se o fizesse, mas já que ela tomou a iniciativa, tudo se resolveu de modo mais rápido. Com a sua prosperidade, viu suas ex-mulheres chegarem , saírem ou se instalarem na cidade, com certa indiferença. Sentia-se um pouco culpado, pelos filhos que fez, pela forma como todas aquelas relações ocorreram e, por isto, sustentava a todas, sem incomodar-se com isto. A única coisa que lhe perturbava bastante era o malabarismo constante que tinha que fazer para não desagradar nenhuma delas e, com isto, evitar brigas, dores de cabeça e escândalos desnecessários. Fazendo tanto esforço para agradar a todas, não compreendeu quando foi Madalene quem gritou. Executava malabarismos notáveis, para não desagradá-la. Reagiu, primeiro, levantando a voz para ela – sentia-se tão confortável com ela, que podia ser ele mesmo, sem exceções – mas, como nunca a tinha visto gritar daquela maneira, baixou a cabeça resignado e ouviu entalado tudo o que ela acreditava ser verdade sobre ele. Ficou confuso e desapontado, quando ela o puniu com uma aridez de trinta dias, mas ao invés de traí-la, jogou-se de cabeça na implantação de um fast –food na cidade. Definitivamente, não compreendia Madalene. Achou que tudo fosse passar rápido, a mulher não era de guardar mágoas, entretanto, não passou. Sentia-se aviltado pela severa punição que sofria. Para ele, a relação estava ótima, era a melhor que já tivera. Confiava nela, se sentia seguro com ela e era a única mulher que não o deixava tenso, até então. Porém, para ela, tudo aprecia ser uma grande mágoa. Ao final dos trinta dias, sentia-se como um cachorro buscando aconchego, se aproximava com o rabo entre as pernas, aguardando sua reação, mas era repudiado. Quando a relação, finalmente, voltou ao normal, viu algo nos olhos dela que o fizeram tremer, mas como não compreendeu, decidiu seguir adiante e esperar que passasse logo.

Madalene levou muito tempo para conseguir encher-se de coragem suficiente para partir. Já fazia anos que estavam juntos e quase nada havia mudado. Continuava aturando as ex-mulheres dele, viu a tão sonhada maternidade ir definhando junto com seu próprio corpo, continuou se sentindo relegada a segundo plano. Desde o episódio do grito, algo não havia voltado para o lugar, era como se alguma peça tivesse rachado e ela sabia que a peça, era ela. Manoel percebia que algo na relação não ia bem e que não havia passado. Não costumava pensar muito sobre sua vida amorosa, preferia o terreno mais sólido dos negócios, mas, quando seu incômodo era muito grande, ligava um pouco trêmulo para Madalene, para certificar-se de que tudo estava bem. Só aí, conseguia relaxar e voltar aos negócios. Sua idéia de trazer um fast food para cidade havia sido bem recebida e a coisa estava tão boa, que conseguiu um sócio em Serrinha. A construção, implantação e funcionamento da lanchonete na cidade vizinha levou quase um ano e Manoel acabava passando mais tempo em Serrinha que em casa. Depois de quase dois meses sem voltar para casa, sentiu uma urgência em retornar e assim o fez. Quando chegou, encontrou sobre a mesa da cozinha, uma rosa cor-de-rosa, com um poema enrolado em seu ramo:

“Meu amor por você é imenso E ao longo dos anos só se tornou mais intenso Mas as agruras da vida tornaram Nossa relação mal vivida E uma relação mal vivida É como uma rosa cor-de-rosa sem água Resiste, insiste, mas despetala Sem vida, sem fibra, sem poesia”

Madalene partiu numa tarde de inverno, encolhida, triste, mas decidida. Chegou a São Paulo três dias depois. Assim que chegou foi pedir informações no metrô, a um senhor de terno e gravata que passou por ela sobre uma Pastelaria, de uma amiga da mãe, onde começaria a trabalhar naquele dia mesmo. O senhor era um advogado bem sucedido, que se encantou com a mulher no momento em que foi por ela interceptado. Casaram-se seis meses depois, numa pequena Igreja da capital. Desta vez, Madalene não teve medo, nem ânsia de vômito. Seu coração confiante não sentiu que se quebraria, nem entrou em sobressaltos, isto só foi ocorrer no dia em que descobriu que estava grávida de uma menina. Seu amor pelo advogado foi de vida. Com ele foi feliz para todo sempre.

Manoel leu o poema dez vezes. Seu corpo inteiro tremia. Não podia acreditar que perdia o amor de sua vida. Quase enlouqueceu. Perdeu as estribeiras com todas as suas ex-mulheres e foi tirando uma a uma da cidade, como uma vingança cega por aquelas que destruíram seu casamento. Ligou para todos os amigos que tinham em comum, inclusive para os pais da moça e, quando descobriu seu paradeiro, viajou para Sâo Paulo, imediatamente. Chegou à Pastelaria e encontrou Madalene, mais bonita do que nunca. Disse que havia se livrado das ex-mulheres, que se ela o aceitasse de volta, iria reverter naquele momento sua vasectomia. Jurou casamento. Mas, para Madalene, as promessas chegavam com anos de atraso e, por mais que o olhasse com amor e com pena, elas não adiantavam mais, mesmo que Manoel as repetisse um milhão de vezes, como parecia disposto a fazer. Madalene, simplesmente, já não o queria. Ele buscava uma razão e, ela, impaciente, lhe dizia que ele sabia quais eram as razões do término. Todavia, tudo era tão doloroso e confuso para Manoel, que ele, realmente, não sabia. Parado a uma quadra da Pastelaria, numa esquina entre a Vinte e Cinco de Março e a Rua Ladeira Porto Geral, Manoel, mais uma vez se viu numa tangente, mas, desta vez, ele sabia, Madalene já não o salvaria. Levou a mão ao peito, porém não conseguiu impedir que seu coração se partisse em muitos pedaços. Morreu ali mesmo, vítima de um infarto fulminante. No bolso, o poema de Madalene e uma foto de ambos, do tempo em que eram felizes, quando ambos ainda sorriam. Morreu sem alegria. Havia perdido para São Paulo, para a Pastelaria e para um homem qualquer que, com certeza, chegaria, sua razão, seu amor, sua mulher, a razão da sua existência. Viu passar pelos seus olhos os momentos em que estiveram juntos, quando podia ser inteiro, quando se sentia livre estando com alguém. Caiu dizendo o nome de Madalene, com o coração aos pedaços. Nenhum remendo mais seria possível. A tangente atingiu-lhe o peito como um raio e neste momento, descobriu porquê ela já não o queria.

FIM